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Brás Cubas: o príncipe melancólico

A morte como humor ácido, desinteresse pelo cotidiano, isolamento no mundo interior, abatimento do espírito e fim do amor à vida. Tudo isso está associado à melancolia, a chamada bile negra (do grego mélas: negro e khólos: bile), como conceituam os autores do artigo O legado de Brás Cubas: o príncipe melancólico. Nesse estudo, publicado na revista Machado de Assis em linha (vol. 12, n.26, abr-ago/2019), Luciana Leal (Universidade Federal de Viçosa) e Alexandre Abreu (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais) propõem um recorte na leitura do quinto romance do escritor, Memórias póstumas de Brás Cubas (1881).

 

Sarah Bernhardt como Hamlet
Créditos da imagem: James Lafayette, c. 1885–1900
 

Para tratar da melancolia, os pesquisadores consideram registros de diversas áreas. Além da acepção do termo na Antiguidade, passam pela visão de autores árabes do século IX — que estabeleceram relações entre humores e planetas —, pelos escritos de Shakespeare, chegando às contribuições de Freud no século XX.

Leal e Abreu examinam esses conceitos para refletir sobre como o sentimento dá o tom às memórias de Brás Cubas, determinando o que será lembrado e o que será esquecido pelo protagonista da obra — um defunto autor. “O estudo da melancolia para além do universo ficcional confere acesso privilegiado à perspectiva do narrador e, portanto, à compreensão de Memórias póstumas de Brás Cubas (ASSIS, 2012). As experiências desse filho abastado da elite brasileira - seus amores, veleidades e frustrações - são o ponto de partida para uma crítica social explícita. Suas memórias ficcionais, escritas além-túmulo, traduzem aspectos do ‘real vivido’, enfatizando a falência moral, as injustiças e os privilégios da elite brasileira do século XIX, personificada na figura de Brás”, escrevem.

O príncipe melancólico

Num segundo momento, os autores do artigo referem-se à passagem do livro em que o finado-autor Brás Cubas cita Hamlet, associando o romance à tragédia. “Ao se comparar a Hamlet, Brás Cubas se aproxima desse príncipe melancólico que, mesmo dotado de imaginação peculiar, é incapaz de vingar a morte do pai - que o deixa profundamente desiludido com o mundo”.

Os pesquisadores traçam os paralelos entre a melancolia e as questões sobre as quais o protagonista se detém. “Como a bile negra é, em si mesma, semelhante ao centro do mundo, ela obriga o ser a investigar o centro de todas as coisas singulares e leva à compreensão das mais profundas verdades. Em sua empreitada memorialística, Brás Cubas se empenha no processo de autoconhecimento e suas experiências individuais o fazem refletir sobre as misérias da condição humana. Desse modo, ele pode se analisar introspectivamente, investigando as causas de sua própria melancolia - e nada melhor, nesse sentido, do que a opção pelo gênero autobiográfico”.

Estabelecem, também aí, a relação com a teoria psicanalítica de Freud, já que os sujeitos melancólicos sofrem de uma patologia que os impele a comunicar seus próprios defeitos ao mundo, pois “(...) acreditam que: ‘Queixar-se é dar queixa, no velho sentido do termo; eles não se envergonham nem se escondem, porque tudo de depreciativo que dizem de si mesmos no fundo dizem de outrem’ (FREUD, 2011, p. 59)”.

Outro aspecto abordado neste estudo é a narração do delírio de Brás Cubas, capítulo do livro em que o personagem trata de grandes temas filosóficos da humanidade. “O delírio precede a morte do protagonista e é repleto de símbolos, mediadores do diálogo estabelecido entre ele e a Natureza, ou Pandora. Nesse diálogo, delineiam-se alguns temas que posteriormente serão abordados pelo defunto-autor - como se fosse uma ‘profissão de fé’ de um sujeito desencantado. No período de desordem mental, Brás Cubas dá forma e expressão aos seus últimos pensamentos e, por meio deles, comunica a sua concepção de vida, além de uma filosofia existencial”.

Encarando a morte de uma pessoa amada: “dolorida, contraída, convulsa”

Em seguida, os articulistas retomam a biografia do personagem, lembrando como a vida de Brás Cubas foi marcada por episódios melancólicos. “As frustrações desse protagonista conferem um tom especial ao romance, numa vida em que nenhum projeto se conclui, afinal, nada é perseguido com firmeza. A narrativa evolui em um palco onde prevalece a ‘decomposição dos seres e das experiências’ (MERQUIOR, 1979, p. 169), todas as relações e objetivos se esvaem, tudo apodrece”.

Leal e Abreu destacam o momento em que Brás Cubas conhece a morte pela primeira vez. Lembram que, ainda que ele tenha presenciado a morte da personagem Leocádia, sua melancolia só se torna evidente quando o protagonista perde uma pessoa amada, sua mãe.

(...) Mas esse duelo do ser e do não-ser, a morte em ação, dolorida, contraída, convulsa, sem aparelho político ou filosófico, a morte de uma pessoa amada, essa foi a primeira vez que a pude encarar. Não chorei; lembra-me que não chorei durante o espetáculo: tinha os olhos estúpidos, a garganta presa, a consciência boquiaberta (...) (ASSIS, 2012, p. 86-87)

Os autores também tratam de como o planeta Saturno, citado no livro, está ligada à melancolia. “Nosso herói é um saturnino, marcado pelo signo de Saturno, que é, também, o planeta das antíteses, o que justifica, em Brás Cubas, a correlação de atributos tão contraditórios. Para Walter Benjamin, tal como ocorre com a melancolia, Saturno é o planeta dos contrastes (...)”.

O emplasto

A partir das questões expostas, os articulistas mostram que Brás Cubas tenta reagir ao estado melancólico e acaba sendo tomado por uma “ideia fixa”: inventar um emplasto anti-hipocondríaco. O fracasso do empreendimento é, segundo os pesquisadores, uma forma de sublinhar a incapacidade do personagem de produzir qualquer coisa, por lhe faltar ousadia e determinação. Leal e Abreu comentam: “Parece-nos que a verdadeira ‘ideia fixa’ é explorar até a última instância o ridículo de um empreendimento atravessado na cabeça do narrador”. É o triunfo da melancolia.

Assim, os autores do estudo concluem que a melancolia é inerente ao humano do final do século XIX. “O protagonista escancara uma sociedade regida pela desfaçatez, emaranhada na rede sem fim das mazelas humanas. Brás Cubas é um homem do seu tempo, sua natureza melancólica configura o estado de espírito de seu tempo, recheado de ceticismo diante da realidade humana, mas sem deixar o toque sutil e irônico, a mordacidade que a condição melancólica consegue tratar muito bem. A questão é destacada quando o protagonista resolve que inventará um emplasto para arrefecer a melancolia da humanidade, algo que lhe trará o ‘amor da glória’”.

Para ler o artigo completo, acesse a revista MAEL (vol. 12, n. 26, abr-ago/2019): O legado de Brás Cubas: o príncipe melancólico